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Quem está na internet já ouviu falar do jogo que conseguiu criar a maior e mais ativa fanbase que já foi vista nos últimos anos. Com isso, muita gente – e eu repito, muita – se perguntou “e o que tem demais nesse jogo?” e em um primeiro momento é lógico e óbvio que, ao ver os gráficos simples e a jogabilidade encontrada em tantos RPG’s baseados em turnos com encontros aleatórios. Mas dentro dessa estrutura já conhecida dentro do meio e repetida por tantas outras obras existem coisas novas. Talvez tanta coisa nova que vamos demorar ainda alguns anos para destrinchar tudo que Toby Fox pensou quando montou UNDERTALE, e algumas delas são especialmente importantes e me chamaram atenção acima de tudo.

Quando se vê uma série, um filme, ou se lê um livro, é possível sentir uma estrutura, momentos calculados em que a história tem um ponto no enredo que é um divisor de águas, o que ficou conhecido como plot points ou plot twists. Ou seja, nas mídias, antes mesmo de uma obra ser concebida, ela já tem uma estrutura que pré-determina quando, dentro da história, vai acontecer algo “inesperado”. É tudo compassado, estruturado, pré-fabricado. Nos videogames também há muito disso, principalmente quando um estilo se consagra sobre os demais. Hoje em dia, por exemplo, a estrutura “mundo aberto” está presente na maior parte dos títulos das grandes empresas. Citando “The Witcher 3”, “Batman: Arkham Knight”, “Assassin’s Creed: Syndicate”, “Far Cry Primal” ou até o franquia Grand Theft Auto podemos ver que sim, o mercado de games cada vez vê que dar um mundo aberto e escolhas ao seu público tem gerado resultados. Mas o que isso quer dizer?

Isso quer dizer exatamente o que a palavra destacada diz: escolhas. Os jogadores querem poder escolher para onde vão e o que vão fazer. E no nosso caso, essa palavra destacada junto com o elemento surpresa estão muito bem relacionadas. Como você deixa o jogador escolher o que quer, mas não dá o resultado que ele espera? Como você gera consequências que o jogador não está acostumado a ter? Essas são coisas que me fizeram pensar muito depois de UNDERTALE, porque o foco central do jogo é justamente ação e consequência. Você toma uma decisão baseado na liberdade que o jogo te dá, mas está sempre preso às reações que são geradas.

Pensando nisso, nós nunca tivemos nada, seja no mercado indie (produtores independentes) ou nas Triple A (grandes empresas) que nos desse essa sensação de forma tão clara. Nem nos jogos da TellTale Games eu senti tanto medo de tomar uma decisão e tão inseguro do que eu deveria dizer ou fazer em um jogo. E não porque ele não me dava informações claras, mas porque eu mesmo tinha pavor das consequências que uma fala, uma ação, poderiam gerar. Eu estava completamente imerso naquele mundo, absorvido pelo que deve ser um dos melhores jogos que eu já joguei na minha vida.

E isso só contribui para o elemento surpresa aparecer, porque – fazendo uma pequena analogia – é mais fácil assustar quem está no escuro. UNDERTALE joga você num universo completamente novo e só te revela as regras dele quando lhe é conveniente. Em menos de dois minutos de jogo eles já te jogam a primeira regra de uma maneira que te pega completamente de surpresa. Eles te dão um susto para você “ficar esperto” e entender que o que você está jogando não é, de forma alguma, o que você está acostumado. Não existem pretos e brancos, não existem clichês, não existem personagens inocentes. E, mesmo com sua atmosfera cômica e cartunesca, ninguém se engana: a história é densa e fica cada vez mais e mais pesada conforme vai se revelando ao jogador.

Com essa estrutura de se revelar um pouquinho por vez, também há a utilização magistral de uma coisa que diferencia videogames de qualquer outra mídia: as nuances e referências do jogador. UNDERTALE brinca com tudo que conhecemos sobre videogames. As lutas são diferentes e únicas, com a opção de matar ou poupar o inimigo, as personagens são diferentes e únicas e também há uma pergunta implícita que é feita desde o início da jornada e que define como o jogo vai se revelar para você:


Você vai matar alguém? Se sim, quem?

“Matar” uma personagem é normal nos videogames. Desde o primeiro Mario Bros. você joga os chefões em poços de lava sem nenhum peso na consciência e mesmo em títulos em que você supostamente deveria sentir culpa de matar os seus inimigos, nunca antes houve um jogo que te dá a opção de poupar a vida até do principal vilão do jogo. E isso nem se trata de vitimizar o vilão, ou de ganhar uma recompensa; se trata única e exclusivamente da sua consciência. Claro que isso parece contraditório com o que foi dito, mas o jogo trabalha tão bem com a consciência do jogador que mesmo que ele não seja punido (até recompensado em certo ponto), a consciência faz esse trabalho, inevitavelmente.


Com isso já temos consciência, elemento surpresa e escolhas. O que nos mostra que Toby Fox, na produção do jogo, não quis usar elementos tradicionais como “punição e recompensa” ou “melhor fim/pior fim”. Suas escolhas são três rotas: pacifista, neutro e genocida. A rota neutra tem cerca de 10 finais diferentes, de acordo com o que foi feito. Esses finais são definidos principalmente pelas mortes causadas. E é aí, depois de mais de duas páginas de texto, que vamos encontrar o principal e – porque não – melhor foco de UNDERTALE: escolhas e consequências.

Ter a opção de poupar seu inimigo não é novidade. Você pode fugir da batalha em qualquer jogo, escolher não lutar, mas isso geralmente é punido já que seu personagem precisa se fortalecer para ultrapassar os próximos obstáculos. UNDERTALE por sua vez vai tratar sua decisão com “respeito” e se adaptar para que você nunca seja punido por sua ação, mas – de novo – isso não quer dizer que ele não vá reagir ao que aconteceu. O jogador vai ter o final que procurou como um reflexo preciso das ações dele.

UNDERTALE entende que consequência não configura punição, e que a moral genuína não é imposta pelo jogo, mas formada pelo jogador de acordo com suas referências. Se o jogador resolver fazer o exaustivo final genocida, matando todos os inimigos que aparecem no jogo, inclusive todos que aparecem por encontros aleatórios, ele pode fazer isso, mas todas as personagens vão reagir, ficando com medo dele e tratando ele como o “vilão” da história. Essa é apenas a reação lógica de alguém que vê um assassino matando seus amigos: medo de ser o próximo a morrer e ficar com ódio dele. Se ele não matar ninguém até o fim do jogo, ele vai poder ajudá-los e virar o “herói” deles. Agora, porque a nomenclatura “herói” ou “vilão”? Quem foi que definiu isso?

Fomos nós, os jogadores. Porque você pode ter feito todas as amizades e não matado ninguém, mas o jogo só te dá uma perspectiva, uma visão. Na verdade você perturba uma ordem e agiu de acordo com um interesse seu. Ninguém te disse que aquilo era certo ou errado, você só agiu da maneira que VOCÊ achava certa. De uma maneira simples e muito bem colocada, UNDERTALE consegue nos dar um senso de moral como nenhum outro jogo jamais fez. E isso porque não impôs nada. Os personagens te dizem que fazer uma coisa ou outra é errada, mas ninguém te pune por ter feito. A única pessoa que te pune é você mesmo.

Nem mesmo o fato das duas lutas mais difíceis do jogo estarem na rota genocida podem ser vistos como punição, mas como desafios que são colocados para se atingir um objetivo maior. Quem aparece para te impedir faz completamente sentido aparecer. Os heróis da história são claros desde o início. Ação e consequência sempre comandam essa obra prima que pode ser visto sim como o melhor jogo de 2015. Não por ser o mais divertido, ou por ser o melhor desenvolvido, mas por ser inteligente.

 


O melhor pensado.

Os jogos de mundo aberto supracitados dão liberdade de movimento ao jogador, ele pode viajar para onde quiser e explorar tudo, mas UNDERTALE tem uma riqueza que esses não tem: liberdade de decisão consistente. Junto com as outras palavras-chave já citadas no texto podemos ver que o jogador tem uma vida dentro do mundo de UNDERTALE, que as personagens tem vida e profundidade. E é por isso que reação nenhuma de personagem pode ser vista como punição, e isso porque todas as reações são visíveis e lógicas de acordo com a personalidade delas.

UNDERTALE supreende. Acho que não existe definição melhor para ele. Te surpreende com o enredo bem-detalhado, com a história te jogando para cima e para baixo o tempo inteiro, mudando sempre seus conceitos e te obrigando a estar sempre atento para conseguir entender a história como o jogo a apresenta. Te surpreende mudando as regras do combate de acordo com quem você está enfrentando e quebrando paredes de maneira que nunca se viu fazer. O que se viu é complexo. E é por isso que todos os produtores de jogos, indies ou Triple A, prestem atenção e absorvam o que Toby Fox fez, porque esse tipo de cuidado nos enredos, na interatividade e nas surpresas estavam faltando no mercado de jogos.

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